Psicóloga conta sua relação com menino doente pelo ebola na Libéria
Ane Fjeldsæter, de 31 anos, saiu da Noruega para ajudar em Monróvia.
Epidemia de ebola já causou 2.811 mortes na África Ocidental.
A psicóloga Ane Bjøru Fjeldsæter, de 31 anos, ficou um mês trabalhando em Monróvia, na Libéria, pelo Médicos Sem Fronteiras. O país é mais afetado pelo ebola, com 1.677 óbitos em 3.280 casos registrados (até 24 de setembro).
Moradora de Trondheim, na Noruega, ela conta em depoimento uma das experiências que mais marcaram durante a estadia na área afetada pelo vírus.
Ao site do jornal norueguês “Dagbladet”, Ane conta que, antes de atuar na Libéria, trabalhou em um campo de refugiados do Sudão do Sul e auxiliou doentes pelo ebola em Serra Leoa. Sobre a epidemia, ela disse sentir que “apagava um incêndio florestal com uma pistola de água”. Ela considera o seu trabalho de psicóloga importante, porque “ajuda as pessoas isoladas por causa do ebola a se sentirem menos sozinhas”.
Veja abaixo o depoimento.
Meu amigo do outro lado da cerca
A Libéria está dividida por uma cerca dupla laranja. Construímos isso para manter a doença sob controle. Construímos para nos separar (os saudáveis, os privilegiados) deles (os doentes, os necessitados). Construímos a cerca para nos sentirmos menos mortais. A fizemos com um nobre propósito de barreira sanitária.
Patrick está no interior da cerca, eu, do lado de fora. Eu o vejo todos os dias e nós sorrimos e acenamos um para o outro. Ele é apenas uma criança, mas está brincando com meninos cinco vezes mais velhos, como se estivesse tentando compensar o fato de ser jovem demais para morrer.
Eles jogam dama e pôquer quando têm energia para isto e escutam a BBC Africa pelo rádio que eu trouxe um dia na minha roupa de “invasora espacial”. Patrick tem um sorriso torto, tímido, e um hematoma perto do olho direito. Acaba de perder sua mãe, mas seu pai está com ele neste lugar horrível.
Todo dia eu digo a mim mesma: Ane, não perca o seu coração para esta criança que logo não estará mais entre os vivos. Ele está aqui por uma semana e, então, terá partido para sempre. Como você vai fazer o seu trabalho quando ele se for? Você não sabe com o que está lidando? “Isso é coisa do ebola”, como dizem no rádio. Taxa de mortalidade de 90%. As pessoas que estão daquele lado da cerca não voltam para este lado. Você sabe que é perigoso se aproximar.
Digo isso a mim mesma todos os dias e nunca ouço. É impossível não olhar para o sorriso torto dele quando eu chego ao trabalho pela manhã. É impossível não notar as pequenas mudanças diárias em seus níveis de energia. Não resisto em acenar para ele ou verificar seu rosto e seu prontuário médico por qualquer indicação, qualquer uma que me permita ter esperança de que ele vai melhorar.
Tudo que me permita ter esperança de que vamos jogar pôquer juntos um dia, sem todo o incômodo de eu ter que usar máscara, óculos de proteção e luvas duplas.
Então, a manhã horrível chegou. Aquela para a qual eu tinha tentado me preparar. A manhã na qual Patrick não acenava mais. Eu olho através da cerca e o vi deitado em um colchão na sombra. Seus amigos mais velhos o rodeiam, na ponta dos pés, preocupados.
Eu me visto. Temo o pior. Faço o meu caminho passando pela enfermaria. Seu pai me diz que Patrick se queixou de dores no estômago durante toda a noite. O menino tem os lábios ressecados, febre, olhos brilhantes e nada da sua energia habitual. Ele tenta sorrir quando me vê.
– Patrick, meu amigo, você não parece tão bem. Me preocupa te ver assim. Posso fazer alguma coisa por você?
Ele olha para cima, sussurra alguma coisa. Eu me inclino em minha “roupa espacial”. O que ele disse?
– Eu disse, você pode me arranjar uma bicicleta?
Oh, Patrick, onde você andaria de bicicleta? Você amava sua mãe e estava perto dela quando ela ficou doente. Agora você está rodeado por cercas laranjas e nunca vai aprender a andar de bicicleta. Você acha que isso é apenas uma dor de estômago? Seus amigos mais velhos não te falaram sobre o ebola? Ou será que eles abaixaram o volume quando na BBC África falaram que, em breve, você estaria evacuando sangue?
Saio do lugar. Não quero começar a chorar dentro dos meus óculos de proteção. Eu me odeio por ter conhecido esse garoto. Por que eu nunca fico em casa?
Tiro o resto do dia de folga. Prometo a mim mesma que vou procurar um emprego normal.
Na manhã seguinte, algo me leva de volta. Quero estar lá pelo pai de Patrick, não importa o que ele estiver passando. Ele parece cansado, mas sorri assim que me vê do outro lado da cerca. Assim que sento numa cadeira ao seu lado, alguém me manda um sorriso torto e tímido. Acenamos.
Vejo que Patrick não tem energia para sair da cadeira, então me visto com a roupa especial para entrar na área de isolamento. Apesar de ver apenas uma fração do meu rosto, ele me reconhece:
– Vejo minha amiga. Não vejo minha bicicleta!
Não posso contar a ele que não achava que sobreviveria até o dia seguinte. Tento encontrar as palavras certas. Posso dizer que me esqueci? Patrick olha para mim com firmeza.
– A mulher esquece, mas o homem não!
Patrick, de onde você tira essas coisas? Esse é o tipo de conversa que você ouve do seu grupo? Prometa que vai começar a brincar com crianças da sua idade um dia.
Patrick recebeu alta no domingo passado com o pai. Ambos pareciam cansados. Eu mal podia acreditar que Patrick tinha se curado do ebola antes que o hematoma perto de seu olho direito desaparecesse. Ele tinha emagrecido tanto, que tivemos de amarrar suas calças com um pedaço de barbante.
Receber alta do centro de tratamento é algo confuso. Depois de semanas nas quais as pessoas têm medo de chegar perto de você, de repente, elas querem te abraçar e te beijar. Isso pode confundir qualquer um, até mesmo um jovem experiente como Patrick.
Nas raras ocasiões em que alguém se recupera, fornecemos um certificado que comprova sua cura. Patrick Poopel, de pé aqui do meu lado da cerca, sorrindo timidamente e segurando certificado de cura de ebola, pronto para aprender a andar de bicicleta.
Ao contrário do que se poderia pensar, Patrick, isso é algo que a mulher nunca vai se esquecer.
Foto: Morgana Wingard/Médicos Sem Fronteiras)
Fonte: G1